O Causo de Estrela
- Lucianne Moreira
- 24 de jan.
- 6 min de leitura
Atualizado: 27 de jan.

- Bom dia, Dona Maria!! Vai leite fresquinho hoje?
A rua inteira acorda ao tilintar do sino do Seu Antônio. As janelas se abrindo aos poucos, com cara de sono e barriga roncando de fome.
- Deus me livre comprar leite de vaca - comenta Zefa, em voz alta.
- Como assim, mãe? O leite não sai da vaca? – questiona Glorinha, sem entender a reação exagerada da mãe. E logo emenda, pensativa:
- Ahhh... deve sair então da caixinha do supermercado.
- Larga de ser boba, menina. Sai da vaca, sim, mas no supermercado a gente sabe que não tem bactérias. Eu não conheço a vaca do Seu Antônio.
- Mas isso não é problema, é só pedir pra ele apresentar a vaca pra gente! Fácil né, mãe?
Sem esperar pela resposta da mãe, a menina sai em disparada rua afora gritando pelo leiteiro:
- Espera, Seu Antônio! Minha mãe e eu precisamos muito ir até o seu sítio conhecer a sua vaca. Pode ser hoje? Pode ser agora? A questão é urgente.
Seu Antônio para a carroça e, entre assustado e curioso, olha pra Glorinha.
- Claro, Glorinha! Por mim, tudo bem. Mas sua mãe vai...
Seu Antônio nem consegue terminar a fala, interrompido pelos gritos de Zefa:
- Glorinha!! Por que saiu nessa correria? O que está aprontando dessa vez? Vamos já para casa!
- Não, mamãe!! Vamos pro sítio do Seu Antônio. Ele já concordou! – esperneia Glorinha.
- Mas eu não concordei - Zefa responde, cruzando os braços.
Glorinha suaviza o tom e, numa voz doce e meiga, implora:
- Mamãe querida... lembra que você me perguntou o que eu queria de presente de aniversário? Eu acabei de escolher o melhor presente de todos: ir ao sítio do Seu Antônio. Por favor, vamos, mamãe! Precisamos conhecer a vaca dele. Na rua toda, só nós não tomamos o leite dela.
Zefa olha para Seu Antônio, que sacode os ombros. Depois, olha para Glorinha, que está com os olhos mareados de água. Olhos que amolecem o coração.
- Tá certo, filhota. Pelo seu presente de aniversário, hein? Depois não vai me pedir outro.
E para seu Antônio:
- Um momentinho, por favor, Seu Antônio. Vou pegar minha bolsa e já vamos.
- Eu também preciso pegar o meu caderno - diz Glorinha, correndo atrás da mãe.
Lá se vão os três, apertados na carroça, rumo ao sítio. Glorinha toda empolgada, escreve concentrada no caderninho. Seu Antônio e Zefa ficam intrigados com o que a menina vai aprontar.
Pouco tempo depois, descem perto da porteira do curral. Seu Antônio na frente, seguido por Zefa e Glorinha.
- Esperem um pouquinho aqui, as duas. Vou buscar minha vaca no pasto e já volto. O bezerrinho vou deixar solto ali do lado de fora.
Minutos depois ele volta, puxando pela corda uma linda vaca preta. O bezerrinho vem correndo atrás dos dois.
- Aqui estamos, Glorinha. Essa é a vaca que vocês queriam conhecer – diz Seu Antônio.
- Que lindo bezerrinho ela tem!! Ele também não pode entrar aqui?
- Melhor não. Se ela acha que vocês podem fazer mal pra ele, acaba ficando brava. Melhor assim. Pode começar, Glorinha.
A menina pigarreia e se aproxima da vaca, tagarelando sem parar.
- Prazer, Dona Vaca! Seu Antônio está vendendo seu leitinho na nossa rua. Minha mãe, a D. Zefa aqui ao meu lado, e eu fizemos questão de vir de te conhecer. Trouxe um relatório com as perguntas que a gente gostaria de fazer. Dona Vaca, eu estou preocupada porque minha mãe me disse que a senhora pode ter bactérias. Aliás, Dona Vaca, a senhora tem nome? Porque o nome é a primeira coisa que a gente precisa saber. Tudo que tem nome já gera confiança.
- Muuu – muge a vaca, balançando energicamente o rabo.
- Meu Deus!! Não precisa de ficar brava... ou Muuu é o seu nome? – pergunta Glorinha, dando um passinho para trás.
- Glorinha, Dona Vaca tem nome, sim! – socorre Seu Antônio - É Estrela e muuu é o jeito que as vacas falam. Melhor é eu mesmo ir respondendo, porque a Estrela já está perdendo a paciência e você nunca vai entender vaquês numa única conversa.
- Foi mal, Seu Antônio, foi mal - se desculpa Glorinha, um pouco sem jeito - Tá certo, o senhor responde, mas a Estrela tem que ficar por perto pra confirmar tudo, caso o senhor conte uma mentirinha, bem pequeninha... eu disse pequenininha, então não precisa ficar nervoso comigo, viu Seu Antônio? E você, Estrela, por favor balance a cabeça pra cima e pra baixo quando a resposta estiver correta e de um lado para o outro quando a resposta estiver errada. Me entendeu? – Glorinha olha para a vaca a espera de uma resposta.
Para a surpresa da menina e de Zefa, que quase cai no chão de susto, a vaca balança a cabeça para cima e para baixo.
- Será que ela entendeu mesmo, Seu Antônio? - Zefa pergunta com a voz tremula.
- Mas é claro que sim, D. Zefa. Pois fique a senhora sabendo que os animais também têm muita inteligência. Às vezes acho que até mais do que muita gente. Por exemplo: eles entendem o que falamos, mas pouquíssimas pessoas entendem o que eles falam.
Zefa coçou a cabeça, pensativa. Será que Seu Antônio estava dizendo que a vaca era mais inteligente do que ela? “Pois bem”, pensou, “Se essa vaca for mesmo inteligente, eu começo a comprar o leite dela. Vamos ver! Eu duvido. Deve ter sido só uma coincidência”.
- Seu Antônio, antes de Glorinha começar as perguntas, preciso fazer um teste com a vaca. Pode ser? - pergunta Zefa, recuperando o folego.
- À vontade, senhora!
- Estrela – começa Zefa sem acreditar que estava mesmo prestes a falar com uma vaca - aqui estamos quatros pessoas: Glorinha, eu, seu Antônio e D. Clara, a esposa dele. Está correto?
- Muuu - muge a vaca, sacolejando a cabeça de um lado para o outro, num claro “não”.
- Não falei, D. Zefa? Ela entende - Seu Antônio gargalha e Zefa fica vermelha igual a um pimentão.
- Agora que ficou provado que ela sabe dizer sim e não, será que podemos começar? - interrompe Glorinha, com seu caderninho e caneta a postos. Zefa, por outro lado, continuava atônita.
- Quantas refeições a senhora faz por dia, Estrela? - dispara a menina, sem esperar resposta dos mais velhos.
- Muu, Muu, Muu
- Pelo número de mus deve ser 3, né, Seu Antônio? Café, almoço e janta? Como a gente?
A vaca sacode a cabeça da esquerda para a direita e seu Antônio responde:
- Não, Glorinha. Depois que tiro o leite, solto a Estrela no pasto junto com o bezerrinho dela. Eles comem o capim que querem e quando querem, até eu trazer eles de novo pra o curral, pra tirar o leite da tarde.
- Vida boa essa, hein? O dia inteiro comendo e brincando no pasto. Tô até com inveja... - suspira Glorinha - Ela tá bem gordinha, né? Não acredito que só come capim... não vai nem uma carninha nem um bifinho? Não vai mais nada? – a menina fica curiosa.
Nervosa, Estrela volta a sacudir a cabeça de um lado para o outro.
- Menina - Seu Antônio também fica bravo - imagina se ela vai comer carne da sua própria família?! Calma, Estrela, calma... - diz ele, afagando a vaca - Desculpa a Glorinha, ela está aqui pra aprender.
Tentando manter a paciência, Seu Antônio suspira e diz, pausadamente:
- Vou resumir, Glorinha. Vai escrevendo aí no seu caderninho. A vida de Estrela é assim: ela toma vacinas, eu passo remédio pra berne, o capim que ela come se chama branqueara. O bezerrinho mama nela todos os dias antes de eu tirar o leite, então ele é bem saudável também. Além disso, eu coloco sal no cocho pro leite ficar mais gostoso e pra completar as vitaminas que faltam no capim. Ela bebe bastante água pura do riacho. Na época da seca, eu também coloco farelo pra ela comer.
Enquanto Seu Antônio fala, Estrela sacode a cabeça de cima para baixo e Glorinha tenta anotar tudo no seu caderninho o mais rápido possível.
Assistindo aquela conversa, Zefa puxa o banquinho e se senta, meio tonta. “Parece conversa de doidos. Eu não estou mais acreditando nos meus olhos e ouvidos. Benza-me Deus!! Essa vaca está concordando com tudo que seu Antônio diz” pensa Zefa.
- Chega, Glorinha, vamos embora agora. Está bem Seu Antônio, ninguém precisa mais me convencer que o leite de Estrela é livre de bactérias. Eu já vi que seu curral é limpíssimo, Estrela e o bezerrinho estão fortes e saudáveis. Ainda por cima, a vaca é inteligente mesmo - diz Zefa, para encerrar o assunto. “Será que essa inteligência sai no leite?” ela gostaria de saber, mas fica com vergonha de perguntar.
- Certo, Dona. Então vamos rápido, que daqui a pouco é hora de tirar o leite da tarde. Já vou te soltar, Estrela. Passeia um pouco, que demora nada estou de volta - disse Seu Antônio, já caminhando para a porteira.
Os dias passam, a rotina segue calma como sempre.
- Bom dia, Dona Maria!! Vai leite fresquinho hoje?
A rua inteira acorda ao tilintar do sino do Seu Antônio. As janelas se abrindo aos poucos, com cara de sono e barriga roncando de fome.
Inclusive a janela de Zefa, agora a primeira a correr com o seu caneco. Tem medo de que o leite acabe e ela fique sem, afinal a freguesia de Seu Antônio aumentou muito depois que ela espalhou a novidade:
- Quem tomar o leite de Estrela, fica inteligente igual a vaca!
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